Teoria e prática do Sigilo: a atenção e o transe

Sigilo

Na minha primeira coluna sobre a Teoria e Prática do Sigilo, falei da relação entre magia e transe. O primeiro a enunciar com todas as letras esse componente fundamental da magia foi Peter Carroll, um dos fundadores da Magia do Caos: “Ritual”, escreve ele em Liber Null e Psiconauta, “é o uso combinado de armas talismânicas, gestos, visualização de sigilos, encantamentos verbais e transe mágico.”

Pode parecer estranho que tenha sido preciso esperar até a metade final do século XX para que isso fosse dito com todas as letras, mas há vários motivos que podem explicar a omissão.

Diferente da maior parte das culturas e sociedades, a civilização ocidental, por influência do cristianismo, sempre encarou com desconfiança transes e estados alterados de consciência (que, para todos os fins práticos, podem ser considerados sinônimos). Magⓐs e feiticeirⓐs sempre trilharam um perigoso fio da navalha, que a qualquer momento poderia levá-los para a prisão ou, em tempos ainda menos esclarecidos, para a fogueira, de modo que precisavam pesar cuidadosamente o que revelar nos textos escritos e o que deixar implícito. Os olhos das autoridades eclesiásticas, tapados com viseiras bíblicas, não veriam muita diferença entre um estado de transe e uma possessão demoníaca.

Além disso, o conceito de transe, que vamos examinar mais de perto daqui a pouco, é uma noção moderna, que só poderia ter sido criada após a invenção da psicologia. Para um mago medieval ou renascentista, qualquer alteração do nível de consciência provavelmente seria interpretado como mais uma consequência do ritual, uma evidência de que ele estava funcionando. O que não deixa de ser verdade. Basta um olhar superficial para perceber que a combinação de estímulos sensoriais – velas coloridas, incensos, música, etc – e o ritmo hipnótico das recitações e conjurações típicas da magia cerimonial são mais do que suficientes para induzir um estado de transe.

Se não acredita em mim, faça o teste.

O ponto é que qualquer forma de magia só é possível se o mago entrar em um estado alterado de consciência, e foram necessárias décadas de avanços na psicologia para que essa necessidade se tornasse auto-evidente. Citando novamente o Peter Carroll: “Estados alterados de consciência são a chave para poderes mágicos.” Phil Hine, outro nome importante da Magia do Caos contemporânea, acrescenta: “Grande parte das técnicas mágicas concerne à exploração de nossos espaços interiores, através de visualização, indução de transe e vidência, por exemplo.”

Mas, perguntará o leitor que não tem acompanhado minhas colunas e não leu meu artigo sobre a criação de sigilos, o que é que o transe tem a ver com o processo de sigilização? Uma vez mais, deixo a resposta sucinta nas mãos de Peter Carroll: “O sigilo é ativado nos momentos em que a mente alcançou a quietude através do transe mágico, ou quando uma emotividade intensa paralisa seu funcionamento normal. Nesses momentos, concentra-se [a atenção] sobre o sigilo, quer como imagem mental, mantra ou em forma de desenho.”

Assim, o transe mágico é um componente necessário não só dos grandes rituais de magia cerimonial, com toda a parafernália de templos, mantos, incensos, robes, armas mágicas, mas até mesmo para a humilde criação de um sigilo improvisado.

No entanto, o que é um estado de transe, e como fazer para produzi-lo? Especialmente quando a intenção é criar um sigilo rápido, em cinco minutos ou menos?

A gente fala em transe e o cidadão já imagina um hipnotizador de palco dizendo para um voluntário semi-adormecido: “Você está sob o meu poder… Você agora é uma galinha!” E o voluntário semi-adormecido sai cacarejando pelo palco. Ou então, pensa num xamã deitado no chão, num profundo estado semi-comatoso induzido por algum alucinógeno que faz o LSD parecer brincadeira de criança.

Mas o transe hipnótico e o transe xamânico são só duas das muitas formas de transe, que é um fenômeno muito mais rico e complexo do que se imagina.

Milton Erickson, o hipnoterapeuta que lançou as bases para o que depois se tornaria a Programação Neuro-Linguística, criada por dois de seus discípulos, John Grinder e Richard Bandler, mostrou que as pessoas passam o dia entrando e saindo espontaneamente de estados de transe, que podem durar horas, minutos ou apenas uma fração de segundo. Erickson ficou famoso, entre outras coisas, por abandonar completamente os procedimentos tradicionais da hipnose, como a proverbial corrente balançando nas mãos do hipnotizador, e induzir estados de transe em seus clientes às vezes com um simples aperto de mão.

“Estar em transe”, escrevem Grinder e Bandler, “não significa que você tem que estar morto. Um monte de gente me diz, ‘tá, eu acho que não estava em um transe porque conseguia ouvir e sentir coisas’. Se você não consegue ver ou ouvir coisas, isso é a morte, que é outro estado diferente. Em hipnose”, e isso vale para quase todos os estados de transe, “o que você ouve e vê na maioria das vezes é amplificado.”

Ao contrário da crença popular que associa transe e inconsciência, a psicologia define o transe como, paradoxalmente e muito pelo contrário, um estado de concentração intensificada. Nas formas tradicionais de indução hipnótica, o que o hipnotizador faz é pedir para o sujeito focar toda a sua atenção em um estímulo específico, seja a voz do hipnotizador, o proverbial relógio balançando numa corrente ou um ponto aleatório na parede. É essa atenção focalizada ou concentrada que caracteriza o transe.

Alguns leitores provavelmente já perceberam que esse é exatamente o mesmo mecanismo usado em meditação, em que o meditador entra em um estado alterado de consciência chamado samadhi ao se concentrar, por exemplo, na respiração, na repetição de um mantra ou na ponta de um incenso.

É também, para pegar a bola que o Peter Carroll deixou quicando lá em cima, o procedimento básico usado para ativar um sigilo.

E sim, isso significa que a forma mais fácil de ativar um sigilo é simplesmente prestar atenção a ele. Nos termos do paradigma energético, quanto mais concentrada estiver a atenção, maior a energia que vai fluir para o sigilo.

A relação entre atenção e energia não é coincidência. Como explica Charles Tart, um dos criadores da Psicologia Transpessoal, nos domínios da psique, atenção é energia: “Atenção/awareness age como energia psicológica nesse sentido. A maioria das técnicas para controlar a mente são maneiras de empregar a energia da atenção/awareness e outras formas de energia para ativar as estruturas desejadas (traços, habilidades, atitudes) e desativar estruturas indesejadas.” Tart não está falando especificamente de sigilos, a praia dele é outra, mas bem poderia: “As estruturas de particular interesse para nós são aquelas que requerem certa quantidade de atenção/awareness para ativá-las.”

Resumo da ópera, o que faz um sigilo funcionar é a atenção que você presta a ele, o que resulta espontaneamente em um estado de transe. As técnicas clássicas que a Magia do Caos usa para ativar um sigilo, como meditação, dança, orgasmo, repetição da forma mântrica do sigilo, e assim por diante, não passam de recursos para intensificar a atenção e, assim, aprofundar o transe.

“Até onde eu sei dizer, profundidade não é uma maneira significativa de pensar sobre o transe”, escrevem Grinder e Bandler. Mas se isso é verdade para a hipnoterapia, definitivamente não se aplica à magia, onde existe uma relação diretamente proporcional entre a eficácia simbólica da operação e a profundidade ou intensidade de um transe (um samadhi meditativo é um transe profundo, mas não intenso; um orgasmo é um transe intenso, mas não profundo).

Entender por que isso acontece é o mesmo que perguntar por que a atenção tem o poder de ativar um sigilo. Como sigilos, da mesma forma que toda a magia, são dispositivos para manipular a realidade, isso envolve questionar a relação entre a atenção e a nossa percepção da realidade, com direito a esse monte de ãos em eco.

E isso necessariamente nos leva a falar de Mecânica Quântica, para desespero dos racionalistas, que se contorcem de frustração toda vez que um esoterista toca no assunto.

Já faz mais de cem anos que a Mecânica Quântica foi formulada e, apesar disso, os físicos ainda continuam debatendo sobre qual a melhor maneira de interpretá-la. Que a Mecânica Quântica é uma teoria válida para descrever a realidade, quase ninguém discute, ela já se provou com todos os avanços tecnológicos que permitiu. Mas os cientistas não conseguem chegar a um acordo sobre o que exatamente ela está dizendo sobre a natureza da realidade, e existem várias interpretações concorrentes.

Uma delas é a de que a consciência cria a realidade.

De acordo com a Mecânica Quântica, quando não está sendo observada, uma partícula, digamos um elétron, não tem características definidas, é uma nuvem de probabilidades composta por uma superposição de todos os estados possíveis que o elétron pode assumir. Mas ao ser medido, em vez dessa superposição, o que obtemos é um elétron concreto, que se encontra em um estado específico. De acordo com alguns físicos, como John von Neumann e Eugene Wigner, isso significa que foi o ato de observar o elétron que o “forçou” a sair da superposição de estados.

A física só chega até aí. Mesmo de acordo com essa interpretação da Mecânica Quântica, apesar de quebrar a superposição de estados potenciais e “criar” um elétron concreto, a observação não é capaz de escolher qual estado o elétron vai adotar ao ser medido.

Se a física não pensasse assim, não seria física. Seria magia.

Os físicos utilizam observação num sentido bem estrito, como sinônimo de medição. Observar um elétron (ou qualquer outra coisa) é o mesmo que medi-lo. Por outro lado, psicologicamente e num sentido mais amplo, observar é o mesmo que prestar atenção.

Considere sob essa luz o que o psicólogo William James escreveu, ainda no séc. XIX: “Milhões de itens de ordem externa são apresentados aos meus sentidos e nunca entram propriamente em minha experiência. Por quê? Porque eles não têm interesse para mim. Minha experiência é composta por aquilo a que eu presto atenção.”

Ou seja, mesmo no nível quotidiano, sem invocar a mecânica quântica, a minha realidade é construída pelos elementos aos quais a minha consciência presta atenção. O que significa que é a atenção que cria a minha realidade consciente.

Em princípio, portanto, mudar o foco da atenção tem o potencial de mudar a realidade que ela constrói (ou seleciona de um pool de realidades potenciais).

Se você perguntar para a primeira geração de magicaoístas eles vão dizer que o transe é necessário para a magia a fim de driblar o censor psíquico, um conceito que Austin Osman Spare aprendeu com A Interpretação dos Sonhos, do Freud, e que a Magia do Caos adotou, aparentemente sem consciência de que o próprio Freud abandonou essa ideia, substituindo-a pela noção muito mais sofisticada (e complexa) de superego.

“Você já sabe que o censor, a autoridade que, com suas dúvidas e objeções pseudo-racionais, tantas vezes dificulta a vida para nós, magos, localiza-se entre as mentes consciente e subconsciente [sic]. Esse censor pode ser evitado inteiramente (ou ao menos em parte) por meio do transe”, escreve Frater U.D., por exemplo.

A meu ver, essa é só parte da resposta, e nem é a parte mais importante. O que o transe faz é criar condições para que o mago concentre sua atenção sobre o sigilo como um simulacro da realidade que ele quer criar. Como um anzol atravessando a superfície para mergulhar nas águas, o sigilo atravessa o inconsciente e mergulha no pool de realidades potenciais (tecnicamente chamada de função de onda), onde ele pesca o intento que o mago deseja implementar, trazendo-o até sua atenção consciente. Uma vez que entra no campo de atenção da consciência, torna-se parte do que ele percebe como sendo a realidade.

Boa pescaria.