Só o surrealismo pode salvar a realidade

Surrealismo

Riso foi a minha primeira reação ao descobrir, no Facebook, um grupo que defendia que a Terra é plana. E não foi um riso de deboche, realmente achei que era uma piada, alguém usando de ironia ao algo assim. Teria passado em branco se, algumas semanas depois, um amigo recém-convertido viesse me explicar que sim, a Terra é plana. E tinha toda uma explicação, mas os argumentos sempre terminavam comigo tendo que responder uma pergunta que ele formulava. Não importava a premissa da pergunta, o importante é que a discussão sempre se dava nos termos dele: não era mais meu amigo que tinha que me convencer que a Terra é plana, mas eu que o tinha que convencer do contrário, e não segundo meus argumentos, mas de acordo com as perguntas que ele fazia.

Já escrevi aqui em outro texto que a Matrix está fazendo uma reengenharia do seu programa, e agora não há uma única verdade consensual que ela impõe ao grupo, mas vai moldando a realidade de acordo com cada um dos usuários. E o principal meio onde essa reengenharia se opera é pelo Google e pelas redes sociais. Seus algoritmos são programados para causar o máximo possível de engajamento e manter o usuário dentro de seus programas, para que possam continuar estudando suas reações, suas preferencias, pessoais, seus sentimentos, enfim, aos poucos a Inteligência Artificial vai te conhecendo melhor do que você mesmo.

Para aumentar o engajamento, é preciso chamar sua atenção. Se alguém diz que é necessário respeitar a opinião de todos, você concorda, mas passa batido. Mas se alguém diz algum absurdo do tipo “a opinião dos brancos deve valer mais do que a dos negros”, imediatamente você para pra ver quem foi que disse tal asneira. E aí você quer responder, a resposta vira discussão e quando você vê, tem gente concordando contigo e dando likes, e a briga não acaba porque ninguém quer dar ao outro a última palavra, você vai no seu próprio mural pra falar como o outro sujeito é um imbecil. E a cada coisa que acontece no episódio, o sistema vai catalogando todas as informações possíveis sobre você, para depois te direcionar conteúdo e propagandas que vão te fazer mais e mais querer voltar.

É justamente por trazer engajamento que o absurdo fica cada vez mais atraente. Quando alguém diz que a Terra é plana, ou que vacinas não funcionam, que o aquecimento climático não existe, isso sempre atrai oposição. Se muitos passam a acreditar nisso, o absurdo passa a se tornar um fator de união, formando grupos cujos membros passam a agir entre si baseado num sentimento de fidelidade. E quanto mais absurdos se defende, mais eles se unem, pois esse sentimento de pertencimento passa a valer mais do que a própria realidade. No final já não importa mais o discurso, e sim o tipo de engajamento que esse discurso atrai.

Neste caso, argumentos racionais já não fazem efeito. Tentar convencer para um terraplanista que ele está errado é perda de tempo, pois ele não está interessado em certeza científica, ele está interessado no retorno emocional que ser um terraplanista lhe traz. E na medida em que esse tipo de discurso se dissemina, aumenta o fosso entre quem é ou não do grupo, e essa divisão, obviamente, é explorado política e financeiramente, o que parece estar levando o mundo a uma divisão sem volta.

Por isso, é cada vez mais comum ouvir que não há diálogo possível. A realidade já não é a mesma para todos, as palavras já não possuem o mesmo significado para todos. É aqui que entra o surrealismo.

O Surrealismo foi um movimento artístico com pretensões revolucionárias, que buscava compreender o inconsciente humano para dele extrair o que havia de verdadeiro e ficava escondido atrás da racionalidade dos discursos. Seu objetivo era transformar sonhos em arte, ou arte em sonhos, rompendo com a racional e causando estranheza para assim tentar libertar as mentes das amarras de uma realidade frustrante e castradora.

Percebam que as afirmações absurdas também buscam a fuga dessa pretensa realidade. No entanto, é uma fuga do ego em busca de sua autoafirmação. A intenção por trás dela é aprisionadora, e não libertadora. É por isso que argumentações puramente racionais não a atingem. A ideia é justamente não ser racional.

Os algoritmos do Vale do Silício descobriram isso antes de tudo, e tentam tirar o máximo de proveito disso. Para eles não interessam o diálogo, só a discórdia. E se o que você vê no seu feed só te traz sentimentos de impotência, de tristeza, de raiva ou satisfazem algum tipo de sentimento de vingança, pode acreditar que isso só acontece para que possam extrair de você mais lucro. Apostar neles como disseminadores da verdade é perder a corrida antes da largada. O que eles querem é o absurdo, e se você não se rende a ele, será psicologicamente destruído.

O que as afirmações absurdas buscam, no fundo, é que se retome a capacidade de sonhar. O problema é que fazem isso trazendo na verdade um pesadelo profundo, um horror que se julgava adormecido e vem à tona depois de ser reprimido, causando estrago por onde passa. Trazendo a distopia. É a capacidade de sonhar, e de mostrar que a utopia é possível, que poderá impedir essa onda predatória de causar todo o estrago em potencial. Mas para isso precisamos nós mesmos abrir mão de nossas certezas moribundas e de lutar pelo que sonhamos. O inconsciente coletivo dá sinais de esgotamento. A realidade está pedindo para ser mudada. Se os sonhos não o fizerem, essa tarefa caberá aos pesadelos.