Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues

Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues

Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues

Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues (2014), Eric Novello.

O título convidativo, feito como um letreiro em neon, deixa bem claro a proposta de Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues… então olhamos melhor a capa bonita e fria, com céu azul escuro e uma cidade tomada por sombras, sobrevoada por pássaros que farejam morte e observada por um lobisomem que espreita no topo de um prédio. Quando terminamos de ler a sinopse na contracapa, sob um coração de fumaça, já estamos intrigados pelo que essa história nos reserva. Apenas “julgando o livro pela capa” somos levados ao clima noir de Libertà; lendo o livro, somos apresentados a uma nova experiência em termos de fantasia urbana. Cortesia de Eric Novello.

Com uma trama bem amarrada e (como eu disse antes) convidativa, o protagonista Tiago Boanerges nos leva a conhecer um cenário de magos e criaturas surreais, que só poderiam habitar um sonho. Essa é a grande sacada aqui. Sonhos. Tudo em Libertà de alguma forma está ligado a sonhos, seja no aspecto de acessar memórias e conhecimentos durante o sono, seja no aspecto de ser inspirado a construir algo valoroso durante a vida, seja no aspecto de experimentar o maior amor de todos. Os sonhos permeiam cada canto da cidade, e além. Ao contrário das histórias de exorcismos que estamos acostumados, os espíritos aqui (a serem exorcizados) são na verdade oníricos, seres etéreos provenientes do mundo dos sonhos — chamado Yume — e que tem o péssimo hábito de possuir as pessoas do mundo físico pelos mais variados motivos.

Os mais comuns são os efrites, oníricos feitos de fumaça — elemento que está por toda parte na narrativa, inclusive dentro do corpo do próprio protagonista, de uma forma que eu particularmente achei sensacional. — A fumaça concede aparência única as interações de Tiago com os oníricos, e torna a atmosfera noir mais pesada, sempre nebulosa e efêmera, difícil de ser tocada, fácil de ser absorvida.

Agora o que interessa mesmo nesse sentido, é que o personagem principal tem um gato onírico, Ori, que logo nas primeiras páginas vem chegando de mansinho, todo se esfumaçando, e conquistando qualquer leitor desavisado com seu jeito “me dê atenção” típico de gato, só que esse é de fumaça… pois é, agora eu quero um gato onírico… como faz?

*Ok, parei… de volta a programação normal*

Apesar do “Exorcismos” do título, uma curiosidade revelada pelo autor em seu site é que as religiões monoteístas não existem no universo do livro. O mundo é mais politeísta, embora isso seja bastante diluído na narrativa — religião e crenças não são o foco aqui. — Mas, também de acordo com o autor, essa ambientação é o motivo da cidade se chamar Libertà. Originalmente, a história se passaria em São Paulo, mas como não existem santos no cenário, não faria muito sentido existir uma São Paulo. Assim nasceu Libertà, uma metrópole fictícia inspirada em diferentes cidades brasileiras. Por isso, como eu disse antes, o exorcismo é direcionado a oníricos, não a espíritos convencionais.

Como uma história embalada pela música, o blues está em toda a parte, com referências a grandes nomes desse estilo musical que influenciou tantos outros que vieram depois. Nina Simone, B.B. King, Freddie King, Elmore James, e suas canções, são alguns dos citados, na maioria das vezes por Tiago, que é fã assumido do gênero. A música dá um sabor especial à leitura e ajuda a entrar no clima do cenário. A história ainda conta com uma canção original, composta pelo próprio Eric Novello e sua irmã, Cássia Novello, especialmente para o livro. Se puder, escute a música, é linda! O nome verdadeiro da canção é “Just For You”, e no livro aparece como “Doomsday”, cantada pela personagem Elisa Goldin.

Uma coisa que sempre me atraiu para o noir, além do clima de decadência e ambiguidade moral, é a relação sempre conturbada entre o personagem principal e seus amores, que quase sempre envolvem uma femme fatale. Entre uma dose e outra de blues e alguns exorcismos, Tiago Boanerges precisa encontrar sua femme fatale. Esse é o foco principal da história: a batalha de um homem decadente contra o amor que um dia o destruiu.

Tiago é um homem passional, excelente no trabalho, mas confuso quando se trata de sua vida pessoal. Sua relação com a pupila Julia Yagami — uma estudante de necromancia que é a coisa mais adorável do universo —, denota muito de suas qualidades, e são os únicos momentos (a princípio) em que Tiago parece se sentir confortável. Quando está com a cantora Elisa Goldin — um amor antigo, que ele não sabe dizer realmente se é um amor —, as coisas oscilam entre o simples e o complicado, como qualquer relação amorosa longa de encontros incertos e esporádicos. Por isso mesmo ele busca desesperadamente uma chance de redenção. A oportunidade surge quando seu antigo supervisor, Marcos Sardenha, o convoca para uma missão especial e sigilosa. Encontrar a musa que no passado Tiago falhou em exorcizar de Elisa, mas foi expulsa graças ao esforço de outros exorcistas. A musa voltou desejando vingança, e apenas Boanerges sabe realmente como encontrá-la e lidar com ela. Assim o exorcista parte em uma investigação para encontrar sua femme fatale. Claro que como uma boa história noir, nem tudo é o que parece, e nada é tão simples.

Ao longo da investigação, Tiago precisa retomar contato com alguns seres sobrenaturais pouco amistosos, desse e de outros mundos. Nitidamente inspirado por Alice no País das Maravilhas e Alice Através dos Espelhos, de Lewis Carroll — o gato onírico logo no começo já é uma tremenda referência —, descobrimos que o mundo onde Libertà se situa — em algum lugar entre Rio de Janeiro e Minas Gerais — é composto por diversas realidades chamadas de reflexos — País dos Espelhos? —, que podem ser acessados eventualmente através de portais. Entre um reflexo e outro, localiza-se o Entremundos, uma realidade entre os reflexos e que se conecta aos reflexos, e por isso mesmo é totalmente inconstante e perigoso àqueles que não saibam como transitar por ele. Boanerges transita pelo Entremundos atrás de pistas, deparando-se com toda a sorte de criaturas estranhas, que vão desde velhinhas assassinas até hipsters zumbis — HIPSTERS. ZUMBIS. FROM HELL… adorei isso! —, incluindo um artesão bizarro inspirado no Freddy Krueger, que rende algumas cenas ótimas com Julia — “Essa camisa do Freddy foi uma piada de muito mau gosto”, ela diz em um momento para Tiago quando eles vão ao Entremundos e encontram o artesão Moebius.

Um detalhe que me cativou é como Novello trabalha a perseguição de Tiago à musa. Assim como um amor impossível, ela é retratada o tempo todo como uma força da natureza distante e praticamente intocável. Sua importância para a trama é grande e sua presença é constante, mas ela não aparece efetivamente. Passamos a maior parte da investigação apenas ouvindo falar dela e do que ela representa, sem que ela nos seja mostrada. Ela é uma legítima femme fatale, que nos intriga e nos fascina justamente por ser pouco mostrada. Conseguimos entender por que Tiago é tão apaixonado e obcecado por ela, e o que desperta esses sentimentos angustiantes nele. Com muito suspense e delicadeza, a musa permanece como uma inspiração efêmera até o grand finale, quando ela finalmente nos é apresentada em um clímax emocionante, de arrancar suspiros de amor e paixão, dignos de um belo orgasmo.

Entre bonecos que moram em garrafas, resquícios de dragões nos céus, pactos e mentiras, Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues conta sua história de maneira estranhamente apaixonante, em uma viagem alucinógena por um mundo de fantasia embalado por boa música. E apesar de todas essas camadas — ou melhor, reflexos — de fantasia e noir, somos apresentados à mais simples das histórias, que assombra os homens desde os tempos mais primordiais, e até hoje continua longe de ser plenamente compreendida. Uma história de amor. Sobre amar e ser amado, sobre ter medo dos erros e acertos que vêm com esse sentimento sempre tão carregado de emoções ao mesmo tempo puras e conflitantes, capaz de fazer até o mais convicto dos convictos sucumbir às incertezas. Porque amar é se jogar. É não conseguir esquecer um amor do passado enquanto se tenta encontrar conforto em um amor do presente. É superar medos e desabores, exorcizar demônios, seguir em frente com novos amores, entre uma dose e outra de whisky e blues… seria esse o sabor da liberdade? Pois é, bem-vindo à Libertà.