Grant Morrison, hipersigilo e a magia da arte

Grant Morrison

Em setembro de 1994, aquele ano distante do milênio passado, quando a Internet ainda engatinhava e o World Trade Center existia, as bancas de jornais foram tomadas de assalto pelo primeiro número de Os Invisíveis, uma história em quadrinhos escrita por Grant Morrison, sobre um grupo de agentes que usava magia para combater entidades demoníacas que queriam impedir a libertação espiritual da humanidade.

Por sua narrativa não-linear, referências obscuras e ideias escandalosamente heréticas, Os Invisíveis divide opiniões até hoje, entre os que acham a história pretensiosa e confusa e os que, como este que vos fala, a consideram uma obra-prima.

O que pouca gente sabia na época, mas o próprio Grant Morrison não demorou a tornar público, é que, mais do que apenas uma história em quadrinhos, Os Invisíveis era um artefato mágico, destinado a remodelar a realidade.

Morrison batizou esse tipo de artefato de hipersigilo.

Não é novidade a união, talvez até identidade, entre arte e magia, muito pelo contrário. Segundo algumas teorias, as próprias pinturas pré-históricas, mais de dez mil anos atrás, já tinham um propósito mágico, nem que fosse ajudar na caça. E quase todas as artes se originaram num contexto mágico ou religioso: os primeiros contadores de histórias, músicos e dançarinos foram os xamãs, o teatro se originou dos Mistérios de Elêusis grego, a função original da arquitetura era a construção de templos, e assim por diante.

O que diferencia os hipersigilos é que eles surgiram no contexto da Magia do Caos, e trazem em seu DNA a atitude punk, anarquista, DIY, que é uma das marcas registradas desse ramo de magia que surgiu na década de 1970, como uma reação direta ao rococó excessivo e complicações desnecessárias que a magia cerimonial jurava de pés juntos serem imprescindíveis para a prática de magia. Dando uma solene banana para a magia tradicional, os caoístas (como ficaram conhecidos) reduziram a prática da magia a seu núcleo-base e jogaram de escanteio os complicados sistemas de correspondências simbólicas desenvolvidos pela Golden Dawn e outras sociedades secretas. Em vez deles, o mago era estimulado a desenvolver e usar seu próprio simbolismo pessoal, com elementos relevantes para o seu inconsciente que, na visão da Magia do Caos, é quem verdadeiramente opera a magia.

A principal ferramenta da Magia do Caos para ressignificar a teoria e prática da magia é a técnica de sigilização, desenvolvida no início do século XX pelo mago inglês Austin Osman Spare (que aparece como personagem em Promethea, de Alan Moore, outro hipersigilo foderoso, apesar do barbudão provavelmente preferir morrer a aplicar à sua obra um termo criado por Morrison).

Contemporâneo de Aleister Crowley, de quem chegou a ser muito próximo, antes do rompimento definitivo entre os dois, Spare preferiu seguir um caminho independente, à margem de organizações, seitas e sociedades secretas, alegando ter sido iniciado por uma velha bruxa inglesa que lhe transmitiu segredos tradicionais da prática. O interessante, já que o tema deste artigo é arte e magia, é que Spare foi um artista plástico, e muitos de seus desenhos são assumidamente sigilos, que Spare criava por meio de desenho automático.

Muito resumidamente, um sigilo é um símbolo que representa o intento do mago, o objetivo que ele espera atingir. Há várias formas de se codificar o intento sob a forma de sigilo, o que, na terminologia mágica, é denominado sigilização. Incorporar o intento a uma obra de arte é só uma delas, mas que abre todo um universo de perspectivas e possibilidades a serem exploradas pelo artista/mago.

Toda obra de arte criada com um intento mágico é um hipersigilo? Aqui, a coisa complica um pouco. A definição “oficial” de hipersigilo é dada por Grant Morrison em “Pop Magic!”, artigo escrito originalmente para o The Book of Lies: Disinformation Guide to Magick and the Occult, e que deveria ter sido o embrião para um livro maior, que Morrison nunca chegou a escrever (ainda tá em tempo, ô careca!):

“O hipersigilo ou supersigilo“, escreve Morrison, “desenvolve o conceito de sigilo para além da imagem estática, incorporando elementos como caracterização, drama e plot.”

Em matemática e na física, o prefixo hiper é usado para se referir à quarta dimensão (por exemplo, um hipercubo, também chamado de tesseract, é um cubo de quatro dimensões) e, desde a Teoria Geral da Relatividade de Einstein, nos acostumamos a pensar na quarta dimensão como sendo o tempo. E é esse o sentido que Morrison atribui ao hiper em hipersigilo:

“O hipersigilo é um sigilo estendido através da quarta dimensão. Os Invisíveis, minha série em quadrinhos, foi um sigilo de seis anos de duração, sob a forma de uma história de aventuras ocultistas, que consumiu e recriou minha vida durante o período de sua composição e execução.”

De acordo com essa definição, então, pinturas, esculturas e outras formas de arte que constroem uma imagem estática, inclusive os desenhos mágicos de Austin Osman Spare, não seriam hipersigilos. De fato, mais adiante, no mesmo texto, ao convidar o leitor a fazer suas próprias experiências com a técnica, Morrison cita vários exemplos de hipersigilos, todos os quais se desdobram ao longo de um período de tempo:

“O hipersigilo pode tomar a forma de um poema, uma história, canção, dança ou qualquer outra atividade artística estendida que você quiser tentar.”

No entanto, uma ambiguidade no texto do Morrison abre a porta para considerarmos como hipersigilo qualquer obra de arte criada com um intento mágico:

“É importante se tornar totalmente absorvido pelo hipersigilo à medida que ele se desdobra; isso requer um alto grau de absorção e concentração (que pode levar à obsessão, mas e daí? Você sempre pode banir no final), como a maioria das obras de arte.”

Quem deve se deixar absorver totalmente pelo hipersigilo? O artista ao criar? O espectador, cuja atenção vai energizar e ativar o sigilo? Ambos? Minha aposta vai para ambos, o que significa que, digamos, um artista plástico que leva horas, dias, anos para criar um desenho, quadro, escultura ou até uma instalação, satisfaz plenamente o critério estabelecido por Morrison para um hipersigilo. Afinal, como o próprio Morrison observa:

“Esta é uma tecnologia recém-desenvolvida, de modo que os parâmetros ainda estão por explorar.”